terça-feira, 26 de fevereiro de 2013


        

PASSAGEM DO ANO EM LISBOA 

EM CORES E

FORMAS DE PEPERÓMIA




            Era Lisboa e era uma cidade de onde os proverbiais e serenos céus haviam desertado, deixando laivos cinzentos, máguas líquidas (quase enfurecidas).
         Era Lisboa e era a cidade gangrenada pelo dilúvio, na rigorosa demarcação do jardim dos sentidos, quando, numa tarde de panos sanguinolentos e lençóis rasgados nos quartos de cama, deflagraram as vaselinas, depois do riso dos gorilas aprisionados na secular delícia de lamberem a própria merda, do mesmo modo como os amantes apreciaram o sabor do espadarte, da sopa dos mariscos orientais, ou o insondável gosto transparente do chá de jasmim, e mais todas as carnes, ervas e perfumes milenários, ou antes, infinitos, na brandura verde que sempre paira sobre as manhãs.
         Tema. Tónica. Dominante. Sensível. Harpejo. Variação. Nota dissonante. Motivo condutor. Harmonia.
Acorde? Fuga? Fá maior? Mi bemol?
Buzina submersa no negrume da multidão?
Velhos de outras cidades soando concertinas de festa. Bramido de escuridão a explodir em pessimismo. Roteiro de uma cidade de bêbedos surreais que circunvagam semi nús e amedrontados por uma noite, por um ano, na praça abrupta, nos relógios calados, nos lampadários partidos.
Personagens já exaustas da vereda das chuvas, da força e da moleza das noites e das torrentes e dos sinais exigidos pelo cristal da taça de pé talhado em ilustre prata.
Eis ali o vaso dos champanhes secos ou dos caminhos perdidos. Silêncio de lonjura e de proximidade. Personagens que aderem ao contorno dos crepúsculos. Personagens modeladas na penúmbra das ausências, coloridas, resplandecentes, jovens e brancas e imprescindíveis.

De súbito, as carícias de um tempo passado. Instante de sol transcendente a florir à tarde, ao lado da cor clara e da forma perfeita e alongada da peperómia que renasce da agrura macia de alguma espécie de cacto do Novo México e condiz com a sorte fanada da buganvília, e mesmo assim ainda casa bem com a perplexidade felina do bambu,  podendo por outro lado irmanar-se com a trepadeira da Tasmânia.


Personagens. Furtivas. Depositadas na penumbra das sedas sensuais e conhecedoras de todas as lendas da China lilás, oferecendo-se ao gosto do beijo embaciado.
Personagens expectantes no meio da praça no ano que vai passar e no ano que vai ficar. Nada sabendo do grito das araras indiscretas, nem do olhar montanhoso do tigre da Sibéria. Ignorantes da adormecida ferocidade da serpente do Brasil.  Calmas. A estalar sorrisos de comicidade, singulares, atormentadas e doces como os rostos do povo que as admira. Personagens numa hora inocentes, noutra hora túrgidas de conhecimento. Confeitos molhados, refinados.
O tempo é o que passa e o que fica, e um ano é igual ao outro, e também ele passa, e também ele fica, abraçado a si próprio, preso ao cio do vento, frágil de tão abstracto, de tão incorpóreo. Talvez exista de uma vez por todas. Talvez permaneça nas mãos e na rotina dos cafés. Talvez se exponha às chuvas e se perpetue de ano para ano nas escadinhas de cor da exposição das obras dos mestres da pintura.



                                                  


De tempo para tempo – e de ano para ano – fecham os melhores restaurantes, os melhores lugares. Os mais brilhantes cinemas são ocupados por quem menos se conhece. Assim como as mais desejadas farmácias não estão de serviço à hora do sofrimento. E de ano para ano as mais remotas paisagens do mundo ficam interditas por falta de dinheiro. E cidades, gentes, planícies, danças e catedrais escondem-se aos olhos ávidos das crianças, como as inflacções, os comércios proibidos, os hoteis proibitivos, os preços do caminho de ferro e do avião.
Mas a população pardacenta dos professores continua a ensinar nas escolas o desconexo de uma vida constantemente construída e destruída na base das matemáticas superiores e das perspectivas falsas, em terras escancaradas de fome. Tudo isso para que a música se desdobre no tecto medievo das igrejas, desde que tangida pelos mesmos cegos, ou cantada pela legião habitual dos trovadores estrábicos, e só para que se repitam as escadinhas de cor nas telas sempre e de novo admiradas e repudiadas dos mestres, dos famosos e afortunados mestres da pintura do tempo.
As mesmas garrafas serão abertas qualquer dia. De ano para ano irreversíveis, os mesmos anátemas serão proferidos.
Uivos de desespero andarão soltos na praça e serão os mesmos, como mesmas as buzinas que se ouvem no sono depressivo dos tecnocratas, ou nos cafés desertificados às dez da noite – ou, quem sabe se nos lençóis deprezíveis daqueles quartos ali em frente.
Até ao dia em que possam fluír as águas íntimas, libertárias – ou sagradas – em seres de olhos lacustres e bocas rendidas em fingido desespero. Até ao dia em que se possam colorir de novo as telas já pintadas pelos mestres da pintura de cada hora em escadinhas de cor. Até ao dia das orquestras mais felizes.
Até ao dia em que se troquem os aneis na travessia dos anos e se deguste a luz mórbida neles reflectida. Até ao dia em que num cinema do outro canto da terra a Arca da Aliança e as tábuas originais de toda a lei encerradas na bênção de um rosto e de um corpo e na totalidade dos espaços que ainda dormem no tempo ensaiem toda a loucura e entoem, definitiva como o ano que entra, a cantata anarquista com a cor clara e a forma perfeita e alongada da peperómia.