domingo, 28 de julho de 2013

       CINCO CANÇÕES PARA UMA NOITE MÁGICA
  


         Dentro da noite mágica ainda pode haver a ferocidade da lua, a rir, em prata antiga, e lavrada,  batendo o tempo das ondas; e da lua ainda o engenho cruel de criar, entre mar e céus nocturnos, uma outra espécie apócrifa de dia, uma qualidade subalterna de clareza; ou um espanto maldoso; o nobre som de um piano adulto; uma fosforescência vegetal. O baile.




O imbondeiro e o panda e o pinguim bradam de inocência. E o cipreste e a coruja. E a águia, o golfinho, o cavalo. Todas as plantas. Todos os animais que os amantes desejariam ser perante a turbulência da noite, abraçados na praia, a oferecer os corpos ao sacrifício do mar, à voracidade obscena das palavras.




         Os amantes caíram sobre a praia. A noite leu-lhes os corpos bizantinos como resíduos móveis produzidos pelo mar. 
A noite fez descer sobre eles o fulgor de uma princesa devassa que desenhou neles o destino, as lâminas, o protesto, a lei, um brilho de recusa.
Foi nos corpos em queda sobre a praia que a noite edificou o lúcido mausoléu onde se guarda o nexo imbecil de todas as coisas.
A noite montou depois o seu popular palanque, e a lua iluminou e presidiu ao baile, e as loiras decrépitas prometeram, sequiosas, mamar o grande, pressuroso e pertinaz sexo de um negro.
A música americana!
O violento cego vocalista!
No mar apareciam os sinais de todos os navios.
Nos corpos bizantinos que caíram na praia entrou o leão negro do êxtase momentâneo, o conhecimento do mal, o triste dom da adivinhação.




  É o vento que cobre a memória.
      Não vês esses pilares desvendados, essas escavações?
      Não vês essas cidades, esses banhos, esses teatros romanos, esses poços árabes, essas pedras fenícias, todas essas ruínas que os arqueólogos pensam inventar?
      Alguém enterrou essas ruínas. Quem? Ninguém. Nenhum homem, nenhum músico, nenhum deus. Cobriram-se com o manto do tempo e dormiram.
      Foi o vento que baixou e levantou sobre elas o tempo e a poeira.
      É o vento que nos cobre a memória.



         Os amantes comeram os pequenos peixes assados na fogueira da praia. Ouviram o último e rápido grito vermelho do dia. E abandonaram as vestes. Finalmente. E romperam enfim as grinaldas. E arrojaram para longe as máscaras perfumadas da incerta virtude e da indiferença. Com a dextra repudiaram o festim da razão e deitaram-se na cama de águas quentes e revoltas. E a sombra dos seus corpos não deixou de ser um risco razoável traçado no esplendor das idades. A lua transfigurara-se para eles em animal sagrado, devolvendo-lhes a visão de um ponto instável no horizonte. Lá permaneciam as torres em que a luz se inanimava; e lá estavam as mil barcas secretas e os mil loiros e sensuais pescadores.
Era a hora em que os espectros regressavam da batalha.









sábado, 2 de março de 2013


ESCRITURAS PALACIANAS



         Daqui distingo, ao sol, o parque sereno das quadrigas; apercebo o relincho dos cavalos malvados que conduzem os gestos portadores da decisão.


        Parque rectangulado, calçado de paralelipípedos verde-negros, ressonante, silencioso como as janelas doravante tomadas da cegueira branca do outro século, ou como os telhados auríferos a cobrir a cena ilustrada onde as senhoras visitadoras caritativas, loiras como búzios-do-vale, administram o movimento das núvens na perpétua lembrança desses falsos perfumes da nação valente e descuidosa – o tabernáculo da virtude cristalina de certas e opostas bandeiras.



        Lá dentro desfilam retratos de outros príncipes românticos em visão de catástrofe, marrafa enérgica ao vento, Delacroix, não sei porquê, ao lado de fragmentos de um cavalo branco. Têm nomes estrangeiros, o que lhes empresta ainda mais densa cercadura heróica, e, não sei porquê, as janelas que vejo, escleróticas de acontecidos e por acontecer, lembram-me os suores régios retidos no brocado dos apartamentos, dos quartos de cama, dos penicos brancos e altos, de loiça, e das calças de elástico apertadas no joelho e tufadas nas côxas, eventualmente mijadas de ácidos majestáticos.

               


        Mas há uma pegada de decência nos senhores que se movem no pátio interno e íntimo e logo se escoam pela portinha anã, e por vezes resmungam em festarolas, ou em actos de assinatura de tratados poéticos. Há neles uma loirice hamletiana. E é a mesma e sua indecisão que semanalmente os empesta de cheiros de santidade clássica, que logo abjuram nas salgadas abluções da segunda feira.
        Às profanas vê-se-lhes no eléctrico a alcinha do soutien; a variz que desponta no interim da côxa marchetada de lilás; e a seriedade que convocam para a assembleia dos sentidos desconexos ao transportarem debaixo do braço volume de autor português respeitàvel e envelhecido pela patetice dos seus leitores fiéis. E o seu sorriso é espongiforme e evanescente como a extremidade oriental de uma estrela, e só com elas o palácio aprende algo do desprezo quadrilheiro das repartições que não foram fundadas para quem lê livros, mas para quem os compra e acumula; e são elas que destinam o subsídio concedido à ministra chinesa das porcelanas, à pintura rupestre dos motivos ornitológicos, às principescas cavalariças, aos monges iluministas vestidos de Armani, de Rosa & Teixeira. Enquanto os computadores lhes vão zurzindo a consciência em labirintos doutorais, as celestes decisoras vão sorrindo e mostrando a ilharga ao príncipe, no tempo em que os rápidos conferencistas vão ornando o rosto de cremes e o cabelo de madeixas fogosas; no tempo das azougadas publicitárias de si mesmas e da sua obra, vazadas as próprias almotolias em quebradiça voz, lendo autos e laudas azuis onde se regista a mentecapta realidade necessária à visitação do príncipe.



        Daqui surpreendo a guarita das sentinelas ajoujadas à sombra do gládio quente e inútil para que o incêndio dos revolucionários da palavra sonegada não invada os recintos onde o príncipe, de óculos escoceses, cabaia e chinelos, sorve a infusão avermelhada servida pelo camareiro eunuco e antecipadamente preparada pelas secretárias e vice-secretárias, pelos caudatários, pelos mandaretes, pelos adjuntos e vice-adjuntos, pelos mágicos, entomologistas, fisiatras e mistagogos, pelos carrascos, pelos sodomitas ajuramentados ao segredo, pelos parvos e pelos núbios, só porque é essa a sua razão de ser e de habitar o palácio.



        Pela tarde, um vice-secretário costuma aceder à sala do trono cinzento para servir ao príncipe uma proposta marinada em vinhos tintos do Hebron e com ele se deter, escarnecendo da vida inútil do palácio e do próprio príncipe, sob sábias estantes de mogno, e sob a pintura pusilânime que retrata a Infanta.
        Podem passar as crianças mongolóides pelo pátio mais solene, em manhãs combinadas e sob autorização da potestade do palácio, e o príncipe muitas das vezes se deleita na contemplação da mazela humana, da atrofia das feridas, olhos revirados, antes de mandar o camareiro administrar-lhes a malga de seu veneno favorito, que é o mais lento, o mais espasmódico e corrosivo.




       

     O príncipe disse-me da premência da identidade da alma colectiva em tempo de integração dos estados em espaços de política mais ampla e unitária; disse-me querer a língua nacional ainda viva daqui a cinquenta anos, e disse-me querer a projecção dessa alma do seu povo pelo mundo pagão, tencionando para o efeito dotar do que chamou de infra-estruturas e de condições de vida e desenvolvimento.
        O príncipe pensa no fim da civilização dos carros e dos outros todos meios de transporte conhecidos e no esgotamento dos recursos naturais, donde o ele pretender ligar os temas da bela alma com temas de higiene climatérica.
O príncipe disse-me gostar de ideias, de convicções, de acreditar em projectos. O príncipe disse-me gosta de lançar ideias para o que chama de opinião pública, porque é o seu lado provocador, polémico, ávido do debate dos assuntos importantes, e conforme ao aprendido com seu Mestre. O príncipe disse-me ter aprendido com seu Mestre que saber estar e romper a tempo, e correr os riscos da adesão e da renúncia era a política que convinha ao palácio.



        Mas leio a lamentosa letra de um cronista: “os discursos dos príncipes que nos governam, coitados, são escritos numa língua de trapos, porque são pessoas de que se suspeita nem sequer terem frequentado a escola primária até ao fim.” E depois ouvi o príncipe soltar a habitual e rouca gargalhada das noites brancas.



        Leio o dizer de outro cronista, enquanto espero a graça da audiência para despacho com o príncipe, e leio aquilo que escreveu o pintor com respeito aos seus quadros: “por muito estrambóticos que os pinte, ponho-lhes sempre uma coisa compreensível a todo o olhar: umas vezes é a composição, outras o colorido, e ainda outras o motivo. E quando consigo reunir esses três aspectos  uma só tela chamam-me genial.”
        “Sem tradição não há criação”, disse outro escriba, um mexicano.
        E eu sei que “matar-se pelo silêncio (tiga sig ibjäl) é dito sueco que exprime uma tragédia dos nortes do mundo, oposta aos ditos do soalheiro sul, onde estultamente se tem necessidade de desabafar com alguém.
       
                                        ***************

        Murmurante, reflicto nas pergaminhadas mensagens do príncipe.                                              
                                                            
               

O príncipe confronta-se com a acepção corrente que diz que ele não tem o que fazer à alma do seu povo. E resmungo o que o príncipe poderia objectar (se me ouvisse): que se ele não tem uma política que tal, e  bem definida, e bem explicitada nos seus propósitos e objectivos, que outro príncipe antes dele a teve?
        Se me ouvisse, o príncipe perguntaria onde estava o crime de ver os projectos da alma invisível serem coroados de êxito pelo próprio povo ignaro que canta e dança nas ruas.
        Se me ouvisse, perguntaria o príncipe aos seus inimigos onde estava o crime de querer ver cheias de povo as salas de descantes, mistérios e outras teatradas de cordel.
        Será esse mistério da alma do povo a sarna que afasta o mesmo povo, porque não se mete com eles, porque não os espelha em preocupações de vida?
        A alma do povo será a linguagem cifrada que afecta os validos e os amicíssimos, mas não se faz entender por esse mesmo bom povo que canta e dança nas ruas?
        A dissidência é um dos mais puros sintomas de uma convivência e de uma vitalidade cultural, disse eu ao príncipe, que não gostou, e que me obrigou a contrapôr-lhe o dito do lorde inglês: “não existem alianças perpétuas nem inimigos eternos, mas antes interesses que mudam”.
        A língua de um povo, os livros de um povo são a alma de um povo, a sua razão, a sua memória, a alegria, a dor e a revolta de uma comunidade. E disto o príncipe gostou. E eu pensei que no universalismo do povo do príncipe estava a chave da preservação da identidade colectiva, porque nesses dias o povo do príncipe bem confuso andava em razão de ser e de existir. O povo do príncipe era um povo de irresistível vocação universalista e ecuménica e nesses universalismo e ecumenismo arriscava o seu presente em cada dia, esquecido da sua História pretérita. Perguntei-me então se a imemorial vocação universalista do povo do príncipe não fora já a premonição de uma identidade pouco pronunciada, sendo embora o dele o principado mais vetusto do continente.

                                               

        Fui contratado como conselheiro do palácio. E fui por isso imediatamente posto a ferros, incomunicável.
        Apenas me é concedido observar em silêncio os humildes movimentos dos cortesãos, ou modestamente comentá-los com os meus companheiros de cárcere, tão incomunicáveis como eu, e na maior parte das vezes comentamos doutamente pela noite tudo aquilo que nem a mim nem a eles é dado ver.
        Vivemos muito elegantemente num palácio sem jardins – tirante o jardim interior e sufocante onde me reclino -, sem uma floresta, sem espaços de algum modo esverdeados; só temos as nossas salas de pedra, conventuais, onde nada existe de facto e tudo ecoa.
        Eu e os meus companheiros formamos o consistório que avisa o príncipe sobre a formalidade das pedras, sobre a anunciação do mar, sobre a visitação das gárgulas, sobre o murmúrio vespertino das esfinges: ou sobre o Díptico das Muralhas Históricas do Abu-Dabi.
        Acerca de tão momentosos temas segredamos-lhe a conduta a seguir e as solenes medidas a tomar pela manhã.
       Mas também o camareiro pessoal, ou o vice-secretário dos vice-secretários, o vedor dos frutos silvestres, o miscigenado mordomo-mor e o tanoeiro encarregado das barricas onde se guardam os termos da diamantífera sabedoria acumulada, sim, também esses lhe segredam de joelhos os planos, as opções, os actos cobardes a cometer, a pose para a hora sempre atendida das ovações; e são esses os encarregados de preparar os banhos de mentol que lhe acrescentam o nexo de si mesmo e fazem as nossas sabedorías e conselhos serem de pacotilha, obrigando o príncipe a ignorá-las – obrigando por sua vez o príncipe a manter-nos, por inúteis, só para obter a medida exacta e todos os dias corrigida da nossa insensatez, da qual ele se livra ao não nos escutar, por forma a impedi-lo de desconfiar do juízo dos senhores invisíveis que são os seus verdadeiros conselheiros, secretários e vice-secretários, criados, caudatários, mágicos, entomologistas, fisiatras e mistagogos, sem esquecer as damas de companhia.
        Por serem as coisas deste jeito, me dou ao labor de ler o que escrevem os representantes do verdadeiro povo: “o cultural tornou-se num fenómeno universal total”; “o cultural como fenómeno universal total continuará a existir, quer o príncipe intervenha, quer não”; “em que medida o cultural é ainda uma forma de resistência a qualquer coisa que do lado do não-cultural nos ameaça?”
        E eu pensava que o espaço da alma do príncipe era uma realidade todavia transcendente à própria ideia de espaço e acompanhava na distância do tempo as deambulações do povo pelos continentes e pelas comunidades de outros príncipes, afluentes que são da forma de ser e viver do povo do príncipe, num sentido mais possível de ser entendido como espaço de trato profano de teres e haveres.
        O desenvolvimento de um espaço de Doze perto das fronteiras do príncipe reconhece, eu diria em pecado de paradoxo, o sentido universalista do povo do príncipe e da sua nobre alma, o povo que transmitiu os valores desse espaço de Doze até aos lados outros do mar e pelas muitas partes do mundo, portadora por sua vez de valores dessas partes outras do mundo para o espaço de Doze onde habitam as almas complexas, sobranceiras, civilizadas, e, conforme o príncipe vocifera: chauvinistas.



        Só muito tarde se sabe qual a tarefa primeira dos conselheiros do príncipe – de todos os príncipes; de todos os favorecidos; e até dos moradores mais eméritos do palácio.
        E era ela, a tarefa, de lhes servir de amparo e anteparo; a opaca qualidade, e aberrante, e absorvente, de abafar o som dos insultos que virá ao princípio das noites; o som do ódio votado aos pássaros que se acumulava de uma manhã para outra pela quantidade das expectativas frustradas.
        Não existe ninguém como os príncipes para entender os escaninhos do bom governo das almas simples.



        O bom governo é o poder de transformar rapidamente num gesto toda a angústia sentida quando, ao chegar pela noite às cocheiras de mármore talhadas em caixotões maneiristas, os príncipes se deparam com os cavalos castanhos do seu orgulho estropiado.
        E por todo o dia, e pelo dia anterior quanto pelo seguinte, esperaram os mais preclaros conselheiros, entomologistas, fisiatras e mistagogos a palavra do príncipe.
        E quando ele falou, soltando essa palavra tosca, exausta, espermática, foi para lhes dedicar um pensamento sombrio, uma tarefa sangrenta. Porque de momento se achava junto ao mar, envolto com a concubina num frágil e irrefragável véu de seda verde-alface e o cérebro se lhe esvaía no pensamento único e assassino da governação, pois não era ainda o tempo de proferir a palavra.
        Os conselheiros vigiaram, assustados, alimentados a vinho e ananazes, até que o tempo da palavra gasta e enorme se formasse; até que o tempo da sua governação alucinada em álcool e tóxicos o fizesse desprezar a concubina, e para que de manhã os cronistas estipendiados infundissem na alma do povo a inquietação.



        E havendo um segundo príncipe, eis a denotação clara na folha solta, branca e vazia onde se esconde o segredo mais perigoso da governação que é o silêncio, a apatia, a omissão, a inércia, cada um deles mais poderoso e heróico do que o outro .
        Quando o segundo príncipe dizia ao seu conselheiro que os cronistas do povo engajados no conto dos feitos do primeiro príncipe nada haviam anunciado daquela sua visita ao segundo povo, e quando destinou de qual dos seus validos, conselheiros ou camareiros seria a horrenda culpa, o carro principesco chegou e deteve-se no terreiro e mil crianças de três anos e meio, filhas do segundo povo, puseram-se a gritar-lhe pelo nome e pela altíssima dignidade de segundo príncipe.
        Apeando-se, o segundo príncipe sorriu aos céus, ignorou-as, e partiu para os paços do conselho onde um cronista da aldeia lhe registou os esgares mesmíssimos e messiânicos do primeiro príncipe.
        Quando perante as forças da terra, informou que em longa e vaga madrugada que o tempo dissolvera como era seu cômpito, havia lido um livro, do qual conhecia a forma e continuava a ignorar o nome e a matéria que versava.
        No mesmo povoado, o segundo príncipe visitou uma casa em ruínas e devidamente assombrada, e escutou com complacência de primeiro príncipe a pedinchice do bailio para que lhe fosse concedido o óbulo principesco que pudesse, antes da chegada da nova aurora, reanimar a povoação deserta e moribunda e reerguer as habitações delidas, por forma a escorraçar as sombras esguias e as vozes lutuosas que no fundo do dia e das noites mais enluaradas clamavam desnecessariamente. E a tanto o segundo príncipe rasgou a boca em sorrisos maldosos, negando a sua prodigalidade, posto que se dirigiu ao destroçado sítio dos mistérios da localidade onde as mil crianças de três anos e meio surdiram do chão, assediando-o de novo, desta vez cobertas de andrajos, conclamando-lhe o nome e a alta dignidade de segundo príncipe; e onde silhuetas vis se deram à persaga execução de um noneto de saxofones.
        Levado à casa de afamado e defunto físico das doenças nervosas, recitou-lhe primeiro os consabidos títulos e palmas de Coimbra, Salamanca e Santiago e Bolonha e Paris, as bandas onoríficas logradas, contemplando seguidamente de comovidos olhos cerrados as loiças holandesas rachadas de negro, os puros cérebros expostos em calda de formol, os apainelados tectos, as poltronas coçadas, o leito esforçado, os retratos. Gritou então na sua agonia estival pelo grande concílio de Trento dos anos Trezentos e logo se calou, desfalecido.
        Na viagem de regresso, parado numa aldeia sem casas, visitou uma grávida à qual a ciência profetizara trigémeos.  De regresso ao carro, derrubado pela canícula, dormiu, inocente, pequeno, belo e poderoso.



O príncipe, o primeiro deles e de todos os outros, e o melhor, velava ainda pela alma e pela identidade do povo de um principado de escombros.
Os palácios dos nobres antigos eram agora estalagens tumefactas, metodicamente destruídas pelos mercadores estrangeiros que arribavam quando apanhados por naufrágios, tanto quanto pelos descendentes dos bárbaros e dos cafres que o principado muito fraternal e miseravelmente acolhia. O príncipe promulgava ordens terminantes aos seus mestres canteiros e pintores e arquitectos para que ao menos as graves frontarias e portais permanecessem na honra desgraçada daquilo que tinham sido.
        Por igrejas e casas senhoriais do principado também se viam perambular os bêbedos, os artistas e os noctívagos, cujos cabelos sonolentos ensebavam as paredes e as colunatas, tornando-os lugares de fedor e vida e discurso que o príncipe simulava não desejar ouvir nem ver.
As bibliotecas e as igrejas do principado haviam sido pilhadas pelos mais sapientes dos monges, e pelos literatos calvos e autoritários, e por todos os mestres da educação e da melhor caligrafia, incunábulos, laudas e códices fotografados em tipo passe por agentes de outros principados, proibindo-se depois ao povo, e mesmo aos sábios, descrer da munificência e do zelo patrimonial do príncipe.
As casas de diversão onde em tempos de mais licença o povo se embebedava de riso e lágrimas eram demolidas e tomadas ou pelos caminhantes salteadores das estradas do deserto, ou pelos mercadores mais ricos que chegavam do mar e lá instalavam os largos bazares, e lá comerciavam os artigos mais deslumbrantes, grãos polícromos, unguentos azuis perfumados, sedas floridas de preto e toda a sorte de simuladores do êxtase, como o faziam os equilibrados e aquilinos agentes de câmbios, instalando novas máquinas e sistemas demoníacos em que o ar gelava e era sempre renovado para facilitar as operações correntes e os fluxos da moeda estrangeira, mais os empréstimos a juros, mais a agiotagem necessária à edificação dos mais gárrulos e prestigiantes abarracamentos.
          Mas o príncipe nunca olvidava a sua mais ingente e digna missão, a de salvar a alma do seu provo, e por isso, como se disse, velava de dia e de noite, e muito para tratar da cara alma dos súbditos se metia a viagens, rodeado de conselheiros, camareiros, auxiliares, mistagogos, serventes e marafonas, ponde pé em dispendiosas passarolas acabadas de inventar que o levavam a suas mesmas terras bem como a novas latitudes e praças fortes e a domínios outros de outros príncipes onde aprendia a razão pela qual tanto e tão entranhadamente conhecia da alma dos seus súbditos, posto que essa alma em nada se tinha de comparação à alma de povos a outros príncipes sujeitos.


           Poderosa razão se levantava para que o príncipe e o segundo príncipe tivessem o trato que tinham com seus cortesãos, conselheiros, secretários, criados, serventes, açafatas e mistagogos.                  
          Desprezavam-nos  no geral da vida palaciana. E no quotidiano das magras tarefas do viver deles, e do pensar e trabalhar a bem de seus amos e do povo, primeiros e segundos, o mais vil e ignaro como o ilustre e perfumado, e por interposta pessoa desses príncipes, eram eles constantemente pelos príncipes admoestados, desconsiderados, destratados, difamados e escarnecidos, em curtas vociferações a ocorrer de acordo com a História pelas horas da viração do dia.
           Por vezes o príncipe exonerava-os. E assim se achavam obrigados a palmilhar as estradas de pó negro, que conduziam aos magnos palácios de outros príncipes, a fim de angariar o pão para suas insaciáveis bocas, e onde o seu fadário de vida e obras se repetia, sem que vissem sorriso algum cintilar nos olhos desses seus novos príncipes.
           Uma poderosa razão para o ostentoso desprezo do príncipe por eles era a de que nunca os seus conselheiros, mordomos, secretários, serventes, açafatas e mistagogos se deveriam sentir alentados pelos dizeres e murmurações dos cronistas contra o príncipe, nem pela caterva de chufas, achincalhos e outro palavroso azourrague que lhe descobrisse moscambilhas de dinheiros, lhe denunciasse toda a fortuna descabida, e casquinasse com seus ditos entontecidos na proclamação dos falsos eventos, das fantasiosas realidades ou das mesquinhas intencões.
            O pessoal do palácio mais chegado ao príncipe não podia ser encorajado por uma boa boa palavra do mesmo príncipe, pois logo essa confiança conferida poderia levar esse pessoal a aludir à última chicotada do último e mais desvergonhado cronista. E nem esta ou aquela atitude do príncipe deveria  ser de modo a que a cáfila dos camareiros, mordomos, criados ou mistagogos se pudesse afirmar concorde com o que corria em bocas do vulgo e concernente à reputação do mesmo príncipe. E mais ainda porque pendia eternamente sobre a cabeça desses servidores próximos a razoável suspeita de que as ferroadas tornadas públicas pelos cronistas nascidas fossem da inconfidência de tão indigno pessoal, ou até mesmo da sua má  vontade, impreparação, ou do seu natural bisbilhoteiro.
            Por parte minha, gostava de estar ao serviço do príncipe pela razão de a realidade sempre ter representado para mim inominável violência, e sabendo que o exercício do principado dispensa de modo muito perfeito a realidade como inspirativo alimento de toda a acção, antes criando, com a  sua existência, todo o contrário dessa realidade que as almas vulgares como a minha acima de tudo respeitam e à qual prestam culto e oferendas quotidianas.
            Na hora da merenda, e para o apuramento do meu estilo escalavrado ao serviço dos despachos da comunicação do meu príncipe, dava-me à leitura de François de Callièrres, diplomata francês dos tempos inexistentes, e do seu pequeno tratado de 1716, De La Maniére de Negocier Avec les Souverains . E nele podia ler: É necessário que ele seja claro e conciso, sem empregar palavras inúteis e sem nada omitir que possa servir à clareza da exposição, e que predomine uma nobre simplicidade, tão distante de uma afectação de sabedoria e de espírito como de negligência e de grosseria, e que os seus despachos sejam igualmente isentos de certas formas de falar novas e afectadas e daquelas que são grosseiras e fora do bom uso Devem deduzir-se os factos com as circunstâncias principais que servem para is esclarecer e a penetrar os motivos mais secretos que fazem agir aqueles com quem se trata; um despacho que não dá conta que de factos, sem entrar nos motivos, não pode passar de uma gazeta, ou notícia.



           E com o fluír do tempo mais inexistente dei em pensar, e pensei que há dois sentidos na saudade: a saudade do acontecido, e a saudade dos cenários do acontecido. Implicitamente estava disposto a confiar na magia dos lugares do acontecido e na sua qualidade de propiciadores de novas felicidades a acontecer. Quanto às saudades do factual acontecido, porque irresistível esse factual, nada de mais e melhor são do que pequenas nostalgias dolorosas (porque irrepetíveis), tenham elas sido de coisas boas ou de coisas ruíns, pequenas fraquezas do íntimo, debilidades do razoável, que, mesmo assim, podem resultar inspiradoras.



                                                              
                                                       Palácio, 1993

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013


        

PASSAGEM DO ANO EM LISBOA 

EM CORES E

FORMAS DE PEPERÓMIA




            Era Lisboa e era uma cidade de onde os proverbiais e serenos céus haviam desertado, deixando laivos cinzentos, máguas líquidas (quase enfurecidas).
         Era Lisboa e era a cidade gangrenada pelo dilúvio, na rigorosa demarcação do jardim dos sentidos, quando, numa tarde de panos sanguinolentos e lençóis rasgados nos quartos de cama, deflagraram as vaselinas, depois do riso dos gorilas aprisionados na secular delícia de lamberem a própria merda, do mesmo modo como os amantes apreciaram o sabor do espadarte, da sopa dos mariscos orientais, ou o insondável gosto transparente do chá de jasmim, e mais todas as carnes, ervas e perfumes milenários, ou antes, infinitos, na brandura verde que sempre paira sobre as manhãs.
         Tema. Tónica. Dominante. Sensível. Harpejo. Variação. Nota dissonante. Motivo condutor. Harmonia.
Acorde? Fuga? Fá maior? Mi bemol?
Buzina submersa no negrume da multidão?
Velhos de outras cidades soando concertinas de festa. Bramido de escuridão a explodir em pessimismo. Roteiro de uma cidade de bêbedos surreais que circunvagam semi nús e amedrontados por uma noite, por um ano, na praça abrupta, nos relógios calados, nos lampadários partidos.
Personagens já exaustas da vereda das chuvas, da força e da moleza das noites e das torrentes e dos sinais exigidos pelo cristal da taça de pé talhado em ilustre prata.
Eis ali o vaso dos champanhes secos ou dos caminhos perdidos. Silêncio de lonjura e de proximidade. Personagens que aderem ao contorno dos crepúsculos. Personagens modeladas na penúmbra das ausências, coloridas, resplandecentes, jovens e brancas e imprescindíveis.

De súbito, as carícias de um tempo passado. Instante de sol transcendente a florir à tarde, ao lado da cor clara e da forma perfeita e alongada da peperómia que renasce da agrura macia de alguma espécie de cacto do Novo México e condiz com a sorte fanada da buganvília, e mesmo assim ainda casa bem com a perplexidade felina do bambu,  podendo por outro lado irmanar-se com a trepadeira da Tasmânia.


Personagens. Furtivas. Depositadas na penumbra das sedas sensuais e conhecedoras de todas as lendas da China lilás, oferecendo-se ao gosto do beijo embaciado.
Personagens expectantes no meio da praça no ano que vai passar e no ano que vai ficar. Nada sabendo do grito das araras indiscretas, nem do olhar montanhoso do tigre da Sibéria. Ignorantes da adormecida ferocidade da serpente do Brasil.  Calmas. A estalar sorrisos de comicidade, singulares, atormentadas e doces como os rostos do povo que as admira. Personagens numa hora inocentes, noutra hora túrgidas de conhecimento. Confeitos molhados, refinados.
O tempo é o que passa e o que fica, e um ano é igual ao outro, e também ele passa, e também ele fica, abraçado a si próprio, preso ao cio do vento, frágil de tão abstracto, de tão incorpóreo. Talvez exista de uma vez por todas. Talvez permaneça nas mãos e na rotina dos cafés. Talvez se exponha às chuvas e se perpetue de ano para ano nas escadinhas de cor da exposição das obras dos mestres da pintura.



                                                  


De tempo para tempo – e de ano para ano – fecham os melhores restaurantes, os melhores lugares. Os mais brilhantes cinemas são ocupados por quem menos se conhece. Assim como as mais desejadas farmácias não estão de serviço à hora do sofrimento. E de ano para ano as mais remotas paisagens do mundo ficam interditas por falta de dinheiro. E cidades, gentes, planícies, danças e catedrais escondem-se aos olhos ávidos das crianças, como as inflacções, os comércios proibidos, os hoteis proibitivos, os preços do caminho de ferro e do avião.
Mas a população pardacenta dos professores continua a ensinar nas escolas o desconexo de uma vida constantemente construída e destruída na base das matemáticas superiores e das perspectivas falsas, em terras escancaradas de fome. Tudo isso para que a música se desdobre no tecto medievo das igrejas, desde que tangida pelos mesmos cegos, ou cantada pela legião habitual dos trovadores estrábicos, e só para que se repitam as escadinhas de cor nas telas sempre e de novo admiradas e repudiadas dos mestres, dos famosos e afortunados mestres da pintura do tempo.
As mesmas garrafas serão abertas qualquer dia. De ano para ano irreversíveis, os mesmos anátemas serão proferidos.
Uivos de desespero andarão soltos na praça e serão os mesmos, como mesmas as buzinas que se ouvem no sono depressivo dos tecnocratas, ou nos cafés desertificados às dez da noite – ou, quem sabe se nos lençóis deprezíveis daqueles quartos ali em frente.
Até ao dia em que possam fluír as águas íntimas, libertárias – ou sagradas – em seres de olhos lacustres e bocas rendidas em fingido desespero. Até ao dia em que se possam colorir de novo as telas já pintadas pelos mestres da pintura de cada hora em escadinhas de cor. Até ao dia das orquestras mais felizes.
Até ao dia em que se troquem os aneis na travessia dos anos e se deguste a luz mórbida neles reflectida. Até ao dia em que num cinema do outro canto da terra a Arca da Aliança e as tábuas originais de toda a lei encerradas na bênção de um rosto e de um corpo e na totalidade dos espaços que ainda dormem no tempo ensaiem toda a loucura e entoem, definitiva como o ano que entra, a cantata anarquista com a cor clara e a forma perfeita e alongada da peperómia.