ESCRITURAS PALACIANAS
Daqui distingo, ao sol, o
parque sereno das quadrigas; apercebo o relincho dos cavalos malvados que
conduzem os gestos portadores da decisão.
Parque rectangulado, calçado de
paralelipípedos verde-negros, ressonante, silencioso como as janelas doravante
tomadas da cegueira branca do outro século, ou como os telhados auríferos a
cobrir a cena ilustrada onde as senhoras visitadoras caritativas, loiras como
búzios-do-vale, administram o movimento das núvens na perpétua lembrança desses
falsos perfumes da nação valente e descuidosa – o tabernáculo da virtude
cristalina de certas e opostas bandeiras.
Lá dentro desfilam retratos de outros
príncipes românticos em visão de catástrofe, marrafa enérgica ao vento,
Delacroix, não sei porquê, ao lado de fragmentos de um cavalo branco. Têm nomes
estrangeiros, o que lhes empresta ainda mais densa cercadura heróica, e, não
sei porquê, as janelas que vejo, escleróticas de acontecidos e por acontecer,
lembram-me os suores régios retidos no brocado dos apartamentos, dos quartos de
cama, dos penicos brancos e altos, de loiça, e das calças de elástico apertadas
no joelho e tufadas nas côxas, eventualmente mijadas de ácidos majestáticos.
Mas há uma pegada de decência nos
senhores que se movem no pátio interno e íntimo e logo se escoam pela portinha
anã, e por vezes resmungam em festarolas, ou em actos de assinatura de tratados
poéticos. Há neles uma loirice hamletiana. E é a mesma e sua indecisão que
semanalmente os empesta de cheiros de santidade clássica, que logo abjuram nas
salgadas abluções da segunda feira.
Às profanas vê-se-lhes no eléctrico a
alcinha do soutien; a variz que desponta no interim da côxa marchetada de
lilás; e a seriedade que convocam para a assembleia dos sentidos desconexos ao transportarem
debaixo do braço volume de autor português respeitàvel e envelhecido pela
patetice dos seus leitores fiéis. E o seu sorriso é espongiforme e evanescente
como a extremidade oriental de uma estrela, e só com elas o palácio aprende
algo do desprezo quadrilheiro das repartições que não foram fundadas para quem
lê livros, mas para quem os compra e acumula; e são elas que destinam o
subsídio concedido à ministra chinesa das porcelanas, à pintura rupestre dos
motivos ornitológicos, às principescas cavalariças, aos monges iluministas
vestidos de Armani, de Rosa & Teixeira. Enquanto os computadores lhes vão
zurzindo a consciência em labirintos doutorais, as celestes decisoras vão
sorrindo e mostrando a ilharga ao príncipe, no tempo em que os rápidos conferencistas
vão ornando o rosto de cremes e o cabelo de madeixas fogosas; no tempo das
azougadas publicitárias de si mesmas e da sua obra, vazadas as próprias
almotolias em quebradiça voz, lendo autos e laudas azuis onde se regista a
mentecapta realidade necessária à visitação do príncipe.
Daqui surpreendo a guarita das
sentinelas ajoujadas à sombra do gládio quente e inútil para que o incêndio dos
revolucionários da palavra sonegada não invada os recintos onde o príncipe, de
óculos escoceses, cabaia e chinelos, sorve a infusão avermelhada servida pelo
camareiro eunuco e antecipadamente preparada pelas secretárias e
vice-secretárias, pelos caudatários, pelos mandaretes, pelos adjuntos e
vice-adjuntos, pelos mágicos, entomologistas, fisiatras e mistagogos, pelos
carrascos, pelos sodomitas ajuramentados ao segredo, pelos parvos e pelos
núbios, só porque é essa a sua razão de ser e de habitar o palácio.
Pela tarde, um vice-secretário costuma
aceder à sala do trono cinzento para servir ao príncipe uma proposta marinada
em vinhos tintos do Hebron e com ele se deter, escarnecendo da vida inútil do
palácio e do próprio príncipe, sob sábias estantes de mogno, e sob a pintura
pusilânime que retrata a Infanta.
Podem passar as crianças mongolóides
pelo pátio mais solene, em manhãs combinadas e sob autorização da potestade do
palácio, e o príncipe muitas das vezes se deleita na contemplação da mazela
humana, da atrofia das feridas, olhos revirados, antes de mandar o camareiro
administrar-lhes a malga de seu veneno favorito, que é o mais lento, o mais
espasmódico e corrosivo.
O príncipe disse-me da premência da
identidade da alma colectiva em tempo de integração dos estados em espaços de
política mais ampla e unitária; disse-me querer a língua nacional ainda viva
daqui a cinquenta anos, e disse-me querer a projecção dessa alma do seu povo
pelo mundo pagão, tencionando para o efeito dotar do que chamou de
infra-estruturas e de condições de vida e desenvolvimento.
O príncipe pensa no fim da civilização
dos carros e dos outros todos meios de transporte conhecidos e no esgotamento
dos recursos naturais, donde o ele pretender ligar os temas da bela alma com
temas de higiene climatérica.
O
príncipe disse-me gostar de ideias, de convicções, de acreditar em projectos. O
príncipe disse-me gosta de lançar ideias para o que chama de opinião pública,
porque é o seu lado provocador, polémico, ávido do debate dos assuntos
importantes, e conforme ao aprendido com seu Mestre. O príncipe disse-me ter
aprendido com seu Mestre que saber estar e romper a tempo, e correr os riscos
da adesão e da renúncia era a política que convinha ao palácio.
Mas leio a lamentosa letra de um
cronista: “os discursos dos príncipes que nos governam, coitados, são escritos
numa língua de trapos, porque são pessoas de que se suspeita nem sequer terem
frequentado a escola primária até ao fim.” E depois ouvi o príncipe soltar a
habitual e rouca gargalhada das noites brancas.
Leio o dizer de outro cronista, enquanto
espero a graça da audiência para despacho com o príncipe, e leio aquilo que
escreveu o pintor com respeito aos seus quadros: “por muito estrambóticos que
os pinte, ponho-lhes sempre uma coisa compreensível a todo o olhar: umas vezes
é a composição, outras o colorido, e ainda outras o motivo. E quando consigo
reunir esses três aspectos uma só tela
chamam-me genial.”
“Sem tradição não há criação”, disse
outro escriba, um mexicano.
E eu sei que “matar-se pelo silêncio
(tiga sig ibjäl) é dito sueco que exprime uma tragédia dos nortes do mundo,
oposta aos ditos do soalheiro sul, onde estultamente se tem necessidade de
desabafar com alguém.
***************
Murmurante, reflicto nas pergaminhadas
mensagens do príncipe.
O
príncipe confronta-se com a acepção corrente que diz que ele não tem o que
fazer à alma do seu povo. E resmungo o que o príncipe poderia objectar (se me
ouvisse): que se ele não tem uma política que tal, e bem definida, e bem explicitada nos seus
propósitos e objectivos, que outro príncipe antes dele a teve?
Se me ouvisse, o príncipe perguntaria
onde estava o crime de ver os projectos da alma invisível serem coroados de
êxito pelo próprio povo ignaro que canta e dança nas ruas.
Se me ouvisse, perguntaria o príncipe
aos seus inimigos onde estava o crime de querer ver cheias de povo as salas de
descantes, mistérios e outras teatradas de cordel.
Será esse mistério da alma do povo a
sarna que afasta o mesmo povo, porque não se mete com eles, porque não os
espelha em preocupações de vida?
A alma do povo será a linguagem cifrada
que afecta os validos e os amicíssimos, mas não se faz entender por esse mesmo
bom povo que canta e dança nas ruas?
A dissidência é um dos mais puros
sintomas de uma convivência e de uma vitalidade cultural, disse eu ao príncipe,
que não gostou, e que me obrigou a contrapôr-lhe o dito do lorde inglês: “não
existem alianças perpétuas nem inimigos eternos, mas antes interesses que
mudam”.
A língua de um povo, os livros de um
povo são a alma de um povo, a sua razão, a sua memória, a alegria, a dor e a
revolta de uma comunidade. E disto o príncipe gostou. E eu pensei que no
universalismo do povo do príncipe estava a chave da preservação da identidade
colectiva, porque nesses dias o povo do príncipe bem confuso andava em razão de
ser e de existir. O povo do príncipe era um povo de irresistível vocação
universalista e ecuménica e nesses universalismo e ecumenismo arriscava o seu
presente em cada dia, esquecido da sua História pretérita. Perguntei-me então se a imemorial vocação universalista do
povo do príncipe não fora já a premonição de uma identidade pouco pronunciada,
sendo embora o dele o principado mais vetusto do continente.
Fui contratado como conselheiro do
palácio. E fui por isso imediatamente posto a ferros, incomunicável.
Apenas me é concedido observar em silêncio
os humildes movimentos dos cortesãos, ou modestamente comentá-los com os meus
companheiros de cárcere, tão incomunicáveis como eu, e na maior parte das vezes
comentamos doutamente pela noite tudo aquilo que nem a mim nem a eles é dado
ver.
Vivemos muito elegantemente num palácio
sem jardins – tirante o jardim interior e sufocante onde me reclino -, sem uma
floresta, sem espaços de algum modo esverdeados; só temos as nossas salas de
pedra, conventuais, onde nada existe de facto e tudo ecoa.
Eu e os meus companheiros formamos o
consistório que avisa o príncipe sobre a formalidade das pedras, sobre a
anunciação do mar, sobre a visitação das gárgulas, sobre o murmúrio vespertino
das esfinges: ou sobre o Díptico das Muralhas Históricas do Abu-Dabi.
Acerca de tão momentosos temas
segredamos-lhe a conduta a seguir e as solenes medidas a tomar pela manhã.
Mas também o camareiro pessoal, ou o
vice-secretário dos vice-secretários, o vedor dos frutos silvestres, o
miscigenado mordomo-mor e o tanoeiro encarregado das barricas onde se guardam
os termos da diamantífera sabedoria acumulada, sim, também esses lhe segredam
de joelhos os planos, as opções, os actos cobardes a cometer, a pose para a
hora sempre atendida das ovações; e são esses os encarregados de preparar os
banhos de mentol que lhe acrescentam o nexo de si mesmo e fazem as nossas
sabedorías e conselhos serem de pacotilha, obrigando o príncipe a ignorá-las –
obrigando por sua vez o príncipe a manter-nos, por inúteis, só para obter a
medida exacta e todos os dias corrigida da nossa insensatez, da qual ele se
livra ao não nos escutar, por forma a impedi-lo de desconfiar do juízo dos
senhores invisíveis que são os seus verdadeiros conselheiros, secretários e
vice-secretários, criados, caudatários, mágicos, entomologistas, fisiatras e
mistagogos, sem esquecer as damas de companhia.
Por serem as coisas deste jeito, me dou
ao labor de ler o que escrevem os representantes do verdadeiro povo: “o
cultural tornou-se num fenómeno universal total”; “o cultural como fenómeno
universal total continuará a existir, quer o príncipe intervenha, quer não”;
“em que medida o cultural é ainda uma forma de resistência a qualquer coisa que
do lado do não-cultural nos ameaça?”
E eu pensava que o espaço da alma do
príncipe era uma realidade todavia transcendente à própria ideia de espaço e
acompanhava na distância do tempo as deambulações do povo pelos continentes e
pelas comunidades de outros príncipes, afluentes que são da forma de ser e
viver do povo do príncipe, num sentido mais possível de ser entendido como
espaço de trato profano de teres e haveres.
O desenvolvimento de um espaço de Doze
perto das fronteiras do príncipe reconhece, eu diria em pecado de paradoxo, o
sentido universalista do povo do príncipe e da sua nobre alma, o povo que
transmitiu os valores desse espaço de Doze até aos lados outros do mar e pelas
muitas partes do mundo, portadora por sua vez de valores dessas partes outras
do mundo para o espaço de Doze onde habitam as almas complexas, sobranceiras,
civilizadas, e, conforme o príncipe vocifera: chauvinistas.
Só muito tarde se sabe qual a tarefa
primeira dos conselheiros do príncipe – de todos os príncipes; de todos os
favorecidos; e até dos moradores mais eméritos do palácio.
E era ela, a tarefa, de lhes servir de
amparo e anteparo; a opaca qualidade, e aberrante, e absorvente, de abafar o
som dos insultos que virá ao princípio das noites; o som do ódio votado aos
pássaros que se acumulava de uma manhã para outra pela quantidade das
expectativas frustradas.
Não existe ninguém como os príncipes
para entender os escaninhos do bom governo das almas simples.
O bom governo é o poder de transformar
rapidamente num gesto toda a angústia sentida quando, ao chegar pela noite às
cocheiras de mármore talhadas em caixotões maneiristas, os príncipes se deparam
com os cavalos castanhos do seu orgulho estropiado.
E por todo o dia, e pelo dia anterior
quanto pelo seguinte, esperaram os mais preclaros conselheiros, entomologistas,
fisiatras e mistagogos a palavra do príncipe.
E quando ele falou, soltando essa
palavra tosca, exausta, espermática, foi para lhes dedicar um pensamento
sombrio, uma tarefa sangrenta. Porque de momento se achava junto ao mar,
envolto com a concubina num frágil e irrefragável véu de seda verde-alface e o
cérebro se lhe esvaía no pensamento único e assassino da governação, pois não
era ainda o tempo de proferir a palavra.
Os conselheiros vigiaram, assustados,
alimentados a vinho e ananazes, até que o tempo da palavra gasta e enorme se
formasse; até que o tempo da sua governação alucinada em álcool e tóxicos o
fizesse desprezar a concubina, e para que de manhã os cronistas estipendiados
infundissem na alma do povo a inquietação.
E havendo um segundo príncipe, eis a
denotação clara na folha solta, branca e vazia onde se esconde o segredo mais
perigoso da governação que é o silêncio, a apatia, a omissão, a inércia, cada
um deles mais poderoso e heróico do que o outro .
Quando o segundo príncipe dizia ao seu
conselheiro que os cronistas do povo engajados no conto dos feitos do primeiro
príncipe nada haviam anunciado daquela sua visita ao segundo povo, e quando
destinou de qual dos seus validos, conselheiros ou camareiros seria a horrenda
culpa, o carro principesco chegou e deteve-se no terreiro e mil crianças de
três anos e meio, filhas do segundo povo, puseram-se a gritar-lhe pelo nome e
pela altíssima dignidade de segundo príncipe.
Apeando-se, o segundo príncipe sorriu
aos céus, ignorou-as, e partiu para os paços do conselho onde um cronista da
aldeia lhe registou os esgares mesmíssimos e messiânicos do primeiro príncipe.
Quando perante as forças da terra,
informou que em longa e vaga madrugada que o tempo dissolvera como era seu
cômpito, havia lido um livro, do qual conhecia a forma e continuava a ignorar o
nome e a matéria que versava.
No mesmo povoado, o segundo príncipe
visitou uma casa em ruínas e devidamente assombrada, e escutou com complacência
de primeiro príncipe a pedinchice do bailio para que lhe fosse concedido o
óbulo principesco que pudesse, antes da chegada da nova aurora, reanimar a
povoação deserta e moribunda e reerguer as habitações delidas, por forma a
escorraçar as sombras esguias e as vozes lutuosas que no fundo do dia e das
noites mais enluaradas clamavam desnecessariamente. E a tanto o segundo
príncipe rasgou a boca em sorrisos maldosos, negando a sua prodigalidade, posto
que se dirigiu ao destroçado sítio dos mistérios da localidade onde as mil
crianças de três anos e meio surdiram do chão, assediando-o de novo, desta vez
cobertas de andrajos, conclamando-lhe o nome e a alta dignidade de segundo
príncipe; e onde silhuetas vis se deram à persaga execução de um noneto de
saxofones.
Levado à casa de afamado e defunto
físico das doenças nervosas, recitou-lhe primeiro os consabidos títulos e
palmas de Coimbra, Salamanca e Santiago e Bolonha e Paris, as bandas onoríficas
logradas, contemplando seguidamente de comovidos olhos cerrados as loiças
holandesas rachadas de negro, os puros cérebros expostos em calda de formol, os
apainelados tectos, as poltronas coçadas, o leito esforçado, os retratos.
Gritou então na sua agonia estival pelo grande concílio de Trento dos anos
Trezentos e logo se calou, desfalecido.
Na viagem de regresso, parado numa
aldeia sem casas, visitou uma grávida à qual a ciência profetizara
trigémeos. De regresso ao carro,
derrubado pela canícula, dormiu, inocente, pequeno, belo e poderoso.
O
príncipe, o primeiro deles e de todos os outros, e o melhor, velava ainda pela
alma e pela identidade do povo de um principado de escombros.
Os
palácios dos nobres antigos eram agora estalagens tumefactas, metodicamente
destruídas pelos mercadores estrangeiros que arribavam quando apanhados por
naufrágios, tanto quanto pelos descendentes dos bárbaros e dos cafres que o principado
muito fraternal e miseravelmente acolhia. O príncipe promulgava ordens
terminantes aos seus mestres canteiros e pintores e arquitectos para que ao
menos as graves frontarias e portais permanecessem na honra desgraçada daquilo
que tinham sido.
Por igrejas e casas senhoriais do principado também
se viam perambular os bêbedos, os artistas e os noctívagos, cujos cabelos
sonolentos ensebavam as paredes e as colunatas, tornando-os lugares de fedor e
vida e discurso que o príncipe simulava não desejar ouvir nem ver.
As
bibliotecas e as igrejas do principado haviam sido pilhadas pelos mais
sapientes dos monges, e pelos literatos calvos e autoritários, e por todos os
mestres da educação e da melhor caligrafia, incunábulos, laudas e códices
fotografados em tipo passe por agentes de outros principados, proibindo-se
depois ao povo, e mesmo aos sábios, descrer da munificência e do zelo
patrimonial do príncipe.
As
casas de diversão onde em tempos de mais licença o povo se embebedava de riso e
lágrimas eram demolidas e tomadas ou pelos caminhantes salteadores das estradas
do deserto, ou pelos mercadores mais ricos que chegavam do mar e lá instalavam
os largos bazares, e lá comerciavam os artigos mais deslumbrantes, grãos
polícromos, unguentos azuis perfumados, sedas floridas de preto e toda a sorte
de simuladores do êxtase, como o faziam os equilibrados e aquilinos agentes de
câmbios, instalando novas máquinas e sistemas demoníacos em que o ar gelava e
era sempre renovado para facilitar as operações correntes e os fluxos da moeda
estrangeira, mais os empréstimos a juros, mais a agiotagem necessária à
edificação dos mais gárrulos e prestigiantes abarracamentos.
Mas o príncipe nunca olvidava a sua mais ingente e digna missão, a de
salvar a alma do seu provo, e por isso, como se disse, velava de dia e de
noite, e muito para tratar da cara alma dos súbditos se metia a viagens,
rodeado de conselheiros, camareiros, auxiliares, mistagogos, serventes e
marafonas, ponde pé em dispendiosas passarolas acabadas de inventar que o
levavam a suas mesmas terras bem como a novas latitudes e praças fortes e a
domínios outros de outros príncipes onde aprendia a razão pela qual tanto e tão
entranhadamente conhecia da alma dos seus súbditos, posto que essa alma em nada
se tinha de comparação à alma de povos a outros príncipes sujeitos.
Poderosa razão se levantava para que o príncipe e o segundo príncipe
tivessem o trato que tinham com seus cortesãos, conselheiros, secretários,
criados, serventes, açafatas e mistagogos.
Desprezavam-nos no geral da vida palaciana. E no quotidiano
das magras tarefas do viver deles, e do pensar e trabalhar a bem de seus amos e
do povo, primeiros e segundos, o mais vil e ignaro como o ilustre e perfumado,
e por interposta pessoa desses príncipes, eram eles constantemente pelos
príncipes admoestados, desconsiderados, destratados, difamados e escarnecidos,
em curtas vociferações a ocorrer de acordo com a História pelas horas da
viração do dia.
Por vezes o príncipe exonerava-os. E assim se achavam obrigados a palmilhar
as estradas de pó negro, que conduziam aos magnos palácios de outros príncipes,
a fim de angariar o pão para suas insaciáveis bocas, e onde o seu fadário de
vida e obras se repetia, sem que vissem sorriso algum cintilar nos olhos desses
seus novos príncipes.
Uma poderosa razão para o ostentoso desprezo do príncipe por eles era a
de que nunca os seus conselheiros, mordomos, secretários, serventes, açafatas e
mistagogos se deveriam sentir alentados pelos dizeres e murmurações dos
cronistas contra o príncipe, nem pela caterva de chufas, achincalhos e outro
palavroso azourrague que lhe descobrisse moscambilhas de dinheiros, lhe
denunciasse toda a fortuna descabida, e casquinasse com seus ditos entontecidos
na proclamação dos falsos eventos, das fantasiosas realidades ou das mesquinhas
intencões.
O pessoal do palácio mais chegado ao príncipe não podia ser encorajado
por uma boa boa palavra do mesmo príncipe, pois logo essa confiança conferida
poderia levar esse pessoal a aludir à última chicotada do último e mais
desvergonhado cronista. E nem esta ou aquela atitude do príncipe deveria ser de modo a que a cáfila dos camareiros,
mordomos, criados ou mistagogos se pudesse afirmar concorde com o que corria em
bocas do vulgo e concernente à reputação do mesmo príncipe. E mais ainda porque
pendia eternamente sobre a cabeça desses servidores próximos a razoável
suspeita de que as ferroadas tornadas públicas pelos cronistas nascidas fossem
da inconfidência de tão indigno pessoal, ou até mesmo da sua má vontade, impreparação, ou do seu natural
bisbilhoteiro.
Por parte minha, gostava de estar ao serviço do príncipe pela razão de
a realidade sempre ter representado para mim inominável violência, e sabendo
que o exercício do principado dispensa de modo muito perfeito a realidade como
inspirativo alimento de toda a acção, antes criando, com a sua existência, todo o contrário dessa
realidade que as almas vulgares como a minha acima de tudo respeitam e à qual
prestam culto e oferendas quotidianas.
Na hora da merenda, e para o apuramento do meu estilo escalavrado ao
serviço dos despachos da comunicação do meu príncipe, dava-me à leitura de
François de Callièrres, diplomata francês dos tempos inexistentes, e do seu
pequeno tratado de 1716, De La Maniére de Negocier Avec les Souverains .
E nele podia ler: É necessário que ele seja claro e conciso, sem empregar
palavras inúteis e sem nada omitir que possa servir à clareza da exposição, e
que predomine uma nobre simplicidade, tão distante de uma afectação de
sabedoria e de espírito como de negligência e de grosseria, e que os seus
despachos sejam igualmente isentos de certas formas de falar novas e afectadas e
daquelas que são grosseiras e fora do bom uso Devem deduzir-se os factos com as
circunstâncias principais que servem para is esclarecer e a penetrar os motivos
mais secretos que fazem agir aqueles com quem se trata; um despacho que não dá
conta que de factos, sem entrar nos motivos, não pode passar de uma gazeta, ou
notícia.
E com o fluír do tempo mais
inexistente dei em pensar, e pensei que há dois sentidos na saudade: a saudade
do acontecido, e a saudade dos cenários do acontecido. Implicitamente estava
disposto a confiar na magia dos lugares do acontecido e na sua qualidade de
propiciadores de novas felicidades a acontecer. Quanto às saudades do factual
acontecido, porque irresistível esse factual, nada de mais e melhor são do que
pequenas nostalgias dolorosas (porque irrepetíveis), tenham elas sido de coisas
boas ou de coisas ruíns, pequenas fraquezas do íntimo, debilidades do razoável,
que, mesmo assim, podem resultar inspiradoras.
Palácio,
1993